O Autor

UM FILHO DA LIBERDADE

Eu me chamo Ronaldo Martins, nasci no bairro do Pero Vaz, em Salvador, Bahia.  O Pero Vaz, juntamente com o bairro Guarani, o Curuzu e a Rua Lima e Silva formam na trama de suas ruas interligadas o conhecido e grande bairro da Liberdade, o maior conglomerado populacional afro-brasileiro em Salvador. Na década de 1980 e 1990, nós, crianças e jovens moradores da Liberdade, éramos diretamente influenciados pelas ações de afirmação cultural e política negra da Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê.  
Lembro que diferente da valorização dada à cultura ocidental na escola que estudei por cerca de oito anos, a escola Parque, uma escola publica que tinha sido uma boa referência de qualidade para educação antes da ditadura militar de 1964 e, na minha época, encontrava-se em franca decadência. No bairro da Liberdade éramos envolvidos pelos ritmos e músicas negras do Ilê Aiyê. 
Sobre a sedução que o Ilê Aiyê exercia em muitas crianças e jovens da Liberdade como eu, meus primos que moravam próximo à sede oficial do Ilê Aiyê, a senzala do barro preto, me contaram que um garoto da rua deles, de pele mais clara, por desejar muito desfilar no carnaval no bloco afro Ilê Aiyê, deitou-se na laje de sua casa e ficou por vários dias se expondo nu ao sol forte para escurecer a epiderme para, poder assim, ser admitido no bloco Ilê Aiyê. A Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê, naquela época, entre suas ações políticas, uma delas era só admitir associados negros de pele mais escura, uma atitude que tinha o objetivo se contrapor as práticas de branqueamento, invisibilidade e inferioridade que estava submetida à população afro-brasileira em Salvador nos anos de 1980 até final da década de 2000. 
Nós, jovens moradores da Liberdade, vivíamos naquele momento essa atmosfera insólita, ou seja, na escola tínhamos a formação dos valores etnocêntricos e branqueadores ocidentais, baseado na disciplina e na orientação política da ditadura militar e na rua vivíamos os valores afro-brasileiros baseados no ser negro, símbolo de luta, resistência e conquista do direito de ser e de viver com dignidade.  
Vale ressaltar que além da violência simbólica do racismo que estávamos submetidos na escola, nos bairros pobres de Salvador naquela época, os jovens afro-brasileiros estavam expostos a pobreza, a fome e ao abandono das políticas públicas. Na minha infância e adolescência, posso contar nos dedos os poucos amigos que conseguiram sobreviver. Lembro-me dos que morreram ou desapareceram e de suas mães, como D. Nicinha e D. Cleonice, mulheres negras, altivas, que sustentavam suas famílias lavando roupa de ganho.
Sobre o ser negro ou ser branco muito presente nos discursos da década de 1970 a 2000 no Brasil, eu posso dizer que vivi na própria pele essas questões identitárias. Lembro que quando eu tinha uns dez anos, em 1974, o ser bonito, bom e digno ainda era para mim sinônimo de ter a pele  e olho claros. Na infância, eu e muitos colegas, estávamos sendo conduzidos no ambiente familiar e na escola a negar a nossa própria aparência e dos nossos assemelhados étnicos.  Já na adolescência, a prática política de afirmação do Ilê Aiyê mexeu com minha autoestima, percebi que o espelho ocidental que estava me mirando na infância não refletia a minha face.  Entretanto, foi somente a partir dos 21 anos, ao conhecer e estudar a cultura nagô dos orixás que reencontrei a face que sempre desejei me ver refletido e, justamente, é essa face que mostro nos quadros que apresento nesse Blog.
Os orixás, força matriz da água, do ar, da guerra, da caça e das árvores.  Princípios inaugurais da vida, inteligência, saúde plena, generosidade, exuberância e capacidade de empreendedora são os reflexos das faces negras  que eu, um filho da Liberdade sou.
Este Blog está dividido em duas áreas, ARTE AFRO-BRASILEIRA DE RONALDO MARTINS e EDUCAÇÃO.  Em ARTE AFRO-BRASILEIRA DE RONALDO MARTINS o enfoque é dado às fotos dos quadros, esculturas, desenhos e as apreciações críticas publicadas nos catálogos das minhas exposições. Em EDUCAÇÃO o enfoque é dado a textos de minha autoria sobre Arte e Educação, Arte Afro-brasileira e Filosofia, disciplinas que leciono em uma escola publica de Salvador.

Ronaldo Martins